VATICANO - Motu Proprio Summorum Pontificum é “também um sinal para toda a Igreja sobre alguns princípios teológicos e disciplinares a serem salvaguardados para sua profunda renovação, tão auspiciada pelo Concílio” - Entrevista com o arcebispo Albert Malcolm Ranjith, Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos

Sexta, 16 Novembro 2007

Cidade do Vaticano (Agência Fides) - No dia 14 de setembro entrou em vigor o Motu Proprio Summorum Pontificum promulgado pelo Papa Bento XVI no 7 de julho de 2007 e dedicado ao rito de São Pio V, revisto em 1962 pelo Papa João XXIII. Com o Motu Proprio (iniciativa promovida por quem tem as faculdades) se oferece a possibilidade de celebrar com o Missal tridentino sem ter que necessariamente pedir a permissão do Bispo. Com o Concílio Vaticano II, e em particular com a reforma litúrgica de 1970 promovida pelo Papa Paulo VI, o antigo Missal tinha sido substituído pelo novo e, apesar de nunca ter sido oficialmente abolido, os fiéis deveriam ter expressamente a permissão do Bispo para utilizá-lo. Uma permissão sancionada dentro de um outro Motu Proprio: o Ecclesia Dei adflicta, assinado pelo Papa João Paulo II no 2 de julho de 1988. Hoje, com o novo Motu Proprio, essa permissão não é mais necessária e todo “grupo estável” de fiéis pode livremente pedir ao próprio pároco a possibilidade de celebrar seguindo o antigo Missal. A Agência Fides dirigiu algumas perguntas a respeito ao arcebispo Albert Malcolm Ranjith, Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

Excelência Reverendíssima, qual é, na sua opinião, o significado profundo do Motu Proprio Summorum Pontificum?
Vejo nesta decisão não somente a solicitude do Santo Padre em abrir as portas do regresso à plena comunhão da Igreja aos seguidores de Dom Lefebvre, mas também um sinal para toda a Igreja sobre alguns princípios teológicos e disciplinares a serem salvaguardados para sua profunda renovação, tão auspiciada pelo Concílio.
Parece-me que existe um forte desejo do Papa de corrigir aquelas tentações, visíveis em alguns ambientes que vêem o Concílio como um momento de ruptura com o passado e de um novo início. Basta recordar o seu discurso à Cúria Romana no dia 22 de dezembro de 2005. Além disso, nem mesmo o Concílio pensou, sobre si mesmo, nesses termos. Seja nas suas escolhas doutrinais, seja naquelas litúrgicas, como também naquelas jurídicas e pastorais, o Concílio foi um outro momento de aprofundamento e de atualização da rica herança teológica e espiritual da Igreja na sua história bimilenária. Com o Motu Proprio, o Papa quer afirmar claramente que toda tentação de desprezo dessas veneradas tradições não tem cabimento. A mensagem é clara: progresso sim, mas não em detrimento ou, sem a história. Também a reforma litúrgica deve ser fiel a tudo aquilo que aconteceu desde o início até hoje, sem exclusões.
Por outro lado, nunca devemos esquecer que para a Igreja Católica a Revelação Divina não é algo proveniente somente da Sagrada Escritura, mas também da Tradição vivente da Igreja. Tal fé nos distingue claramente de outras manifestações da fé cristã. A verdade para nós é aquilo que emerge, por assim dizer, de todos esses dois pólos, ou seja, da Sagrada Escritura e da Tradição. Essa posição para mim é muito mais rica do que outras visões, porque respeita a liberdade do Senhor a guiar-nos rumo à uma mais adequada compreensão da verdade revelada através também do que acontecerá no futuro. Naturalmente, o processo de discernimento daquilo que emerge será aplicado através do Magistério da Igreja. Mas aquilo que devemos captar é a importância atribuída à Tradição. A Constituição Dogmática Dei Verbum afirmou essa verdade claramente (DV 10).
Além disso, a Igreja é uma realidade que ultrapassa os níveis de uma pura invenção humana. Esta é o Corpo Místico de Cristo, a Jerusalém celeste e a estirpe eleita de Deus. A Igreja, por isso, supera as fronteiras terrestres e toda limitação de tempo; é uma realidade que transcende muito a sua manifestação terrestre e hierárquica. Por isso, nela, aquilo que foi recebido deve ser transmitido fielmente. Nós não somos nem inventores da verdade nem os seus donos, mas somente aqueles que a recebem e têm a tarefa de protegê-la e transmiti-la aos outros. Como dizia São Paulo falando da Eucaristia: “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti” (1Cor 11, 23). O respeito da Tradição não é, portanto, um “opicional” na busca da verdade, mas a sua base que deve ser aceita. Por isso, para a mesma Igreja, a fidelidade à Tradição é uma atitude essencial. O Motu Proprio, na minha opinião, deve ser entendido também nesse sentido. Este é um possível estímulo para uma necessária correção de rumo. Com efeito, em algumas opções da reforma litúrgica, aplicadas depois do Concílio, foram adotadas orientações que ofuscaram alguns aspectos da liturgia, melhor refletida pela precedente práxis, porque, para alguns, a renovação litúrgica foi entendida como algo a realizar ex novo. Porém, sabemos bem que tal não foi a intenção da Sacrosanctum Concilium, que releva que “as novas formas, de alguma maneira, provêm organicamente daquelas já existentes” (SC 23).

Uma característica do Pontificado de Bento XVI parece ser a insistência em torno de uma correta hermenêutica do Concílio Vaticano II. Na sua opinião, o Motu Proprio “Summorum Pontificum” vai nessa direção? Se sim, em que sentido?
Já como Cardeal, nos seus escritos o Papa tinha rejeitado um certo espírito de exuberância visível em alguns círculos teológicos, motivados por um chamado “espírito do Concílio” que, para ele, foi na realidade um verdadeiro “anti-espírito” ou um “Konzils - Ungeist” (Relatório sobre a Fé, San Paolo, 2005, capitolo 2). Cito textualmente tal escrito, no qual o Papa destaca: “É preciso decididamente opor-se a essa esquematização de um antes e um depois na história da Igreja, completamente injustificada pelos próprios documentos do Vaticano II, que não fazem outra coisa senão reafirmar a continuidade do catolicismo” (ibid p. 33).
Ora, um tal erro de interpretação do Concílio e do caminho histórico e teológico da Igreja influiu sobre todos os setores eclesiais, inclusive da liturgia. Um certo comportamento, por un lado de fácil rejeição das evoluções eclesiológicas e teológicas, como também daquelas litúrgicas do último milênio, e, do outro, de ingênua idolatria daquilo que teria sido a mens da Igreja chamada dos primeiros cristãos, teve um influência de não pouca relevância sobre a reforma litúrgica e teológica da era pós-conciliar.
A rejeição categórica da Missa pré-conciliar, como um resquício de uma época “superada”, foi o resultado dessa mentalidade. Muitas pessoas viram as coisas desse modo, mas não todos, graças à Deus.
A própria Sacrosanctum Concilium, a Constituição Conciliar sobre a Liturgia, não oferece nenhuma justificação para tal atitude. Seja nos princípios gerais, seja nas normas propostas, o Documento é sóbrio e fiel àquilo que significa a vida litúrgica da Igreja. Basta ler o número 23 deste documento para estar convencido de tal espírito de sobriedade.
Algumas dessas reformas abandonaram importantes elementos da Liturgia, com as relativas considerações teológicas: agora é necessário e importante recuperar esses elementos. O Papa, que considera o rito de São Pio V revisto pelo bem-aventurado João XXIII uma via de recuperação daqueles elementos ofuscados pela reforma, certamente refletiu muito sobre a sua escolha; sabemos que ele consultou diversos setores da Igreja sobre tal questão e, apesar de algumas posições contrárias, decidiu permitir a livre celebração daquele Rito. Tal decisão não è tanto, como dizem alguns, um retorno ao passado, quanto uma necessidade de requilibrar de modo íntegro os aspectos eternos, transcendentes e celestes, com aqueles terrestres e comunitários da liturgia. Ela ajudará a estabelecer eventualmente um equilíbrio também entre o sentido do sagrado e do mistério, de um lado, e o dos gestos externos e dos comportamentos e compromissos socioculturais derivantes da liturgia.

Quando ainda era Cardeal, Joseph Ratzinger insistiu muito sobre a necessidade de ler o Concílio Vaticano II a partir do seu primeiro documento, ou seja, a Sacrosanctum Concilium. Por que, na sua opinião, os Padres Conciliares quiseram se dedicar primeiramente à liturgia?
Antes de tudo, por detrás de tal escolha estava certamente a consciência da importância vital da liturgia para a Igreja. A liturgia, por assim dizer, é central, pois aquilo que se celebra é aquilo que se crê e aquilo que se vive: o famoso axioma Lex orandi, lex credendi. Por isso, toda verdadeira reforma da Igreja passa por meio da liturgia. Os Padres estavam conscientes de tal importância. Além do mais, a reforma litúrgica era um processo já em ato inclusive antes do Concílio, a partir, sobretudo, do Motu Proprio Tra le Sollecitudini de São Pio X e a Mediator Dei de Pio XII.
Foi São Pio X quem atribuiu à liturgia a expressão “primeira fonte” do autêntico espírito cristão. Talvez até a existência das estruturas e da experiência de quem se engajava com o estudo e a introdução de algumas reformas litúrgicas estimulava os Padres Conciliares a escolher a liturgia como matéria a ser considerada antes das sessões do Concílio. O Papa Paulo VI refletia a mens dos Padres Conciliares sobre a questão, quando disse: “Nós advertimos o obséquio da escala de valores e deveres. Deus em primeiro lugar; a oração é a primeira obrigação nossa; a liturgia primeira fonte da vida divina a nós comunicada, primeira escola de nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos fazer ao povo cristão....”
(Paulo VI, Discurso de encerramento do 2° período do Concílio, 4 de dezembro de 1963).
Muitas pessoas interpretaram a publicação do Motu Proprio “Summorum Pontificum” como um desejo do Pontífice de aproximar a Igreja aos cismáticos lefrevianos. O Sr. concorda? O Motu Próprio tem esta aspiração?
Sim, mas não apenas esta. Explicando as razões de sua decisão, seja no texto do Motu Próprio, seja na carta de apresentação aos Bispos, o Santo Padre descreve também outras razões importantes. Naturalmente, ele considerou a exigência sempre maior, avançada por diversos grupos e principalmente pela Sociedade de São Pio X e da Fraternidade Sacerdotal de São Pedro, assim como de Associações de Leigos, pela liberalização da Missa de São Pio V. Assegurar a integração total dos Lefrevianos era importante também pelo fato que muitas vezes, no passado, cometeram-se erros de juízo, causando divisões inúteis na Igreja, divisões que se tornaram quase insuperáveis. O Papa fala deste risco possível na carta de apresentação do Documento, escrita aos Bispos.

Quais são os problemas mais urgentes para a justa celebração da Sacra liturgia? Em que pontos é preciso insistir mais?
Acredito que o Papa tenha visto, na crescente demanda pela liberalização da Missa de São Pio V um certo vazio espiritual, causado pelo modo com o qual os momentos litúrgicos são celebrados na Igreja. Esta dificuldade brota tanto de algumas orientações da reforma litúrgica pós-conciliar que tendiam a reduzir, mais ainda, confundir aspectos essenciais da fé, quanto também de comportamentos aventurosos e pouco fiéis à disciplina litúrgica da própria reforma; o que se constata em todos os lugares.
Acredito que uma das causas do abandono de alguns elementos importantes do rito tridentino na realização da reforma pós-conciliar por parte de certos setores litúrgicos seja o resultado do abandono ou da subestimação daquilo que aconteceria no segundo milênio da história da liturgia. Alguns liturgistas viam o desenvolvimento deste período de modo bastante negativo. Este juízo é errado, porque quando se fala da Tradição viva da Igreja, não se pode escolher o que está em sintonia com as nossas idéias pré-concebidas. A Tradição, considerada em um sentido geral, inclusive em alguns âmbitos da ciência, da filosofia ou da teologia, é sempre algo vivo, que continua a evoluir e progredir, até nos momentos altos e baixos da história. Para a Igreja, a Tradição viva é uma das fontes da revelação divina, e é fruto de um processo de evolução contínuo. Coisa verdadeira também na tradição litúrgica, com “t” minúscula. O desenvolvimento da liturgia no segundo milênio tem o seu valor. A Sacrosanctum Concilium não fala de um novo Rito, ou de um momento de ruptura, mas de uma reforma que emirja organicamente daquilo que já existe. É por isso que o Papa diz: “na história da liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações passadas era sagrado, permanece sagrado e grande para nós, e não pode ser repentinamente proibido, ou até mesmo considerado prejudicial” (Carta aos Bispos, 7 de julho 2007). Idolatrar aquilo que ocorreu no primeiro Milênio em detrimento do sucessivo é, portanto, um comportamento pouco científico. Os Padres Conciliares não tiveram este comportamento.
O segundo problema seria uma eventual crise de obediência ao Santo Padre, observada em alguns ambientes. Este comportamento de autonomia é visível em alguns eclesiásticos, inclusive nos mais altos níveis da Igreja, e não beneficia a nobre missão confiada por Cristo a seu Vigário.
Sabe-se que em algumas nações ou dioceses, os Bispos emanaram regras que praticamente anularam ou deformaram a intenção do Papa. Este comportamento não está em sintonia com a dignidade e a nobreza da vocação de um pastor da Igreja. Não estou dizendo que todos são assim. A maioria dos Bispos e eclesiásticos aceitaram, com o devido sentido de discrição e obediência, a vontade do Papa. Isto é muito honrável. Infelizmente, algumas pessoas levantaram protestos.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que esta decisão foi necessária, porque como diz o Papa, a Santa Missa “em muitos lugares não era celebrada de modo fiel às prescrições do novo Missal; ao contrário, este era usado muitas vezes como autorização, ou até mesmo uma obrigação, à inventar, que leva muitas vezes à deformações da liturgia à limites do suportável”. “Falo por experiência” - continua o Papa, “porque eu também vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões, e vi como foram profundamente feridas pelas deformações arbitrárias da liturgia, pessoas que estavam totalmente enraizadas na fé da Igreja” (Carta aos Bispos). O resultado destes abusos foi um crescente espírito de nostalgia pela Missa de São Pio V. Além disso, o desinteresse geral em ler e respeitar os documentos normativos da Santa Sé, como também as Instruções e Premissas dos livros litúrgicos, piorou a situação. A liturgia ainda não consta suficientemente na lista das prioridades dos Cursos de Formação contínua dos eclesiásticos.
Distingamos bem. A reforma pós-conciliar não é completamente negativa; aliás, há muitos aspectos positivos naquilo que foi realizado. Mas há também mudanças introduzidas abusivamente que continuam a ser praticadas, apesar de seus efeitos nocivos para a fé e a vida litúrgica da Igreja.
Falo, por exemplo, de uma mudança efetuada na reforma, que não foi proposta nem pelos Padres Conciliares e nem pela Sacrosanctum Concilium, ou seja, a comunhão recebida nas mãos. De certa forma, isto contribuiu para uma menor fé na Presença real de Cristo na Eucaristia. Esta praxe, e a abolição das balaustras do presibitério, dos genuflexórios das igrejas e a introdução de práticas que obrigam os fiéis a estarem sentados ou em pé durante a elevação do Santíssimo Sacramento reduzem o genuíno significado da Eucaristia e o sentido da adoração profunda que a Igreja deve dirigir ao Senhor, Unigênito, o Filho de Deus. A Igreja, morada de Deus, é usada em alguns lugares como uma sala para encontros fraternos, concertos ou celebrações inter-religiosas. Em algumas igrejas, o Santíssimo Sacramento é quase escondido ou abandonado em uma Capelinha invisível e pouco decorada. Tudo isso obscurece a fé na presença real de Cristo, tão central na Igreja,. Para nós, católicos, a Igreja é essencialmente a morada do eterno.
Outro erro sério é confundir os papeis específicos do clero e dos leigos no altar, fazendo do presbitério um lugar de demasiado movimento e não certamente o “lugar” no qual o cristão consegue perceber a maravilha e o esplendor da presença e da ação salvífica do Senhor. O uso das danças, dos instrumentos musicais e dos cantos que pouco têm de litúrgico não são conformes ao ambiente sagrado da igreja e da liturgia. Acrescento ainda que certas homilias de caráter sócio-político são por vezes pouco preparadas. Tudo isso descaracteriza a celebração da Santa missa e faz dela uma coreografia, uma expressão de teatralidade, não de fé.
Existem ainda aspectos pouco coerentes com a beleza e a maravilha daquilo que é celebrado no altar. Nem tudo é ruim no Novus Ordo, mas muitas coisas ainda devem ser ordenadas, para evitar ulteriores danos à vida da Igreja. Acredito que o nosso comportamento em relação ao Papa, suas decisões e a expressão de sua solicitude pelo bem da Igreja deve ser somente aquilo que São Paulo recomendou aos Coríntios; “que tudo seja feito para a edificação” (1Cor 14, 26).
(P.L.R.) (Agenzia Fides 16/11/2007)


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